Jaime Amparo Alves
http://comraivaepaciencia.blogspot.com.br/
19/08/2014
Hesitei
em escrever sobre o assassinato de Michael Brown, em Ferguson, no estado
estadunidense do Missouri, no ultimo dia 9 de agosto. Não há nada de novo nas imagens televisivas
de um joven negro de 18 anos abatido a
tiros nas ruas de uma cidade onde quer que seja. Afinal, enquanto Brown era assassinado em
Ferguson, no sul do continente outros
jovens negros encontravam a morte nas mãos da polícia militar. Do outro lado do Atlantico, a comunidade
negra relembrava o Massacre de Marikana, quando em 16 de agosto de 2012 a
polícia sul-africana assassinou a 34 trabalhadores negros que protestavam por
melhores salarios. Estas e tantas outras
mortes que ainda virão são a reiteração de uma “verdade racial” que não deixa
dúvidas sobre o lugar do corpo negro em
“nossas” sociedades.
Talvez
tenha sido Franz Fanon quem tenha melhor articulado em palavras a
impossibilidade negra no mundo social. Para ele, nós negras e negros habitamos
uma zona chamada “a zona do não-ser”. Somos,
por assim dizer, civilmente/socialmente mortos e é essa morte ontológica
(a impossibilidade de sermos reconhecidos/as como parte da comunidade
humana) o que faz possível a existencia civil branca. Não
é estranho, portanto, que a solidariedade na luta anti-racista quase sempre
desvala na impossibilidade branca de pensar no que Fanon chamou de
“exclusividade recípocra”. Em suas palavras: “não é possivel reconciliação
porque, dos dois termos [o branco e o negro] um é supérfluo” (1963, 39). Qual?
Deixo
para outra ocasião a questão da cumplicidade branca com a morte negra (um
incisivo campo teórico – me vem a mente o inovador trabalho de Lourenco Cardoso
- tem se ocupado disso mostrando como os brancos lucram com suas identidades)
para me ater em um outro aspecto: a (im)possibilidade de resistir a violência
do/no estado racial. Desde o sábado quando Michael Brown foi assassinado, os
Estados Unidos têm registrado uma série de revoltas urbanas que lembram os
protestos “violentos” de Los Angeles, em 1992, quando as cameras de video
flagraram policiais espancando um joven negro nos suburbios da cidade. As revoltas nas cidades estadunidenses são um
lembrete da ausência de espaco político para a questão negra dentro da chamada
sociedade civil. Os canais tradicionais de manifestação aquí e lá não dão conta
de responder ãos desafíos das gentes negras. Na verdade, eles parecem parte do
problema. Neste sentido, os protestos pacíficos dos brancos progresistas, e
daqueles negros que conseguiram um “lugar” ão sol, se contrastam com as
furiosas demonstrações de “basta” de uma juventude encurralada nos guetos
estadunidenses.
Aqui
o outro lado da América pós-raça de Barack Obama: são pelo menos 2 milhoes de
pessoas encarceradas. Em muitos dos
suburbios das cidades estadunidenses, há mais homens negros encarcerados do que
nas universidades. As projeções mais otimistas dão conta de que em 2020 pelo
menos 1 de cada 4 jovens negros estarão atrás das grades. Segundo o National Poverty Center, pelo menos
15% dos estadunidenses estão na pobreza
e, de acordo com o Departamento do Trabalho dos EUA, a taxa de desemprego entre os negros é de
11,4% (contra 6,2% da população em geral). Desnecessário dizer que a condição
negra nos EUA reflete a situação em que se encontram os negros no Brasil, na
Colombia, na Africa do Sul, no mundo.
Aquí entre nós, a polícia mata em
proporções semelhantes a policía sul-africana no período do apartheid; como na
Colombia, as mulheres negras ocupam o
mesmo lugar do periodo colonial, na cozinha dos senhores brancos; as nossas favelas são um espelho do regime de
segregação racial sul-africano e estadunidense.
Em
todos estes lugares, o corpo negro habita uma zona mortal e, quando as balas da
polícia o atingem, sua eliminação física
é “apenas” a reiteração de mútliplas mortes (física, simbólica,
ontológica). É possível concebermos a
idéia de alguém morrer várias vezes? O que o assassinato de Michael Brown,
Travin Martin, Claudia Ferreira, Amarildo Silva e tantos outros nos lembra é
que a morte negra não é tragédia. Ela carece de um registro político para ser
considerada como tal. Nem o Estado nem a sociedade civil podem nos ajudar nesse
“registro” porque ambos fazem parte de um projeto racial que requer uma guerra
permanente contra nós negras e negros. É neste sentido que se tornam ridículos os termos do nosso debate (me incluo aquí) em
torno de figuras negras que buscam salvar a República e extirpar os defeitos de
nascença do estado, como se o corpo negro que ocupa tais espaços deixasse de
ser lido a partir do registro da negação ontológica. Onde residiria a
possibilidade de resistência para quem
lhe é negada a possibilidade de ser?
Existe, de fato, possibilidade de politizar a morte negra se a morte
negra não ganha, perante a sociedade civil, o estatus de assassinato?
Como
fica visível nas manifestações que tomam as cidades estadunidenses agora, que explodiram nos suburbios de Paris em
2005, no bairro de Soweto, em 2012, e seguem nos levantes da juventude negra
Brasil afora, a politização da morte negra só é possível a partir de uma prática
radical autónoma. A morte negra cria condições de possibilidades para uma
comunidade política constituida na violencia legítima, na dor e na raiva. Como
nos lembra João Costa Vargas , a diáspora africana é uma supra-geografia da
violencia e da resistencia, um espaco do genocidio negro e da rebelião
permanente. Oxalá estas e tantas outras mortes sejam, entao, semente de uma
comunidade política em que negras e negros, aquí e lá, se sintam responsáveis
pela vida de cada um/a e de todos. Ferguson,
Capão Redondo, Soweto, Aguablanca
……. Presente!
Postado por Jaime Amparo Alves.
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